domingo, 30 de outubro de 2011

do outro lado da ponte

o marquinho ia andando do meu lado, a cabeça baixa, quieto, parecia que sempre perdido, com a mente em outro lugar. mas de vez em quando falava alguma coisa e era sempre a mesma frase. "não compra pó pra minha mãe, a velha não pode cheirar". eu garantia que ninguém faria isso ee ele acalmava um pouco, voltando ao estado normal. era invariavelmente assim quando íamos eu, ele, o sávio e o paco atravessar a ponte para comprar pó. a gente estudava junto e normalmente fazia isso de quinta ou sexta. morávamos todos ali no bairro e tínhamos que passar pela ponte e virar a primeira esquina à esquerda pra, no beco do rato, encontrar o véinho e pegar a parada. eu e o marquinho não cheirávamos. eu tinha chegado a usar alguma vez ou outra, mas nada de mais. o paco gostava muito e o sávio meio que ia na dele. mas estávmaos os quatro sempre juntos e, de um modo ou de outro, não havia muito a se fazer por ali. o engraçado, ou não, é que tinha um guardinha de transito sempre ali, no fim da ponte, e as vezes apareciam uns policias pra falar com ele. eu ficava sempre com medo e até chegava a voltar pra trás e me irritava o modo como o marquinho seguia adiante, indiferente. ele era meio retardado, e é chato dizer isso, mas era, e a gente meio que cuidava dele. mais eu, poarque os caras não tinham muita paciencia. em alguns dias até levava ele em casa. a mãe dele era uma velha gorda e quieta e estava sempre com cara de triste e por vezes chorando. moravamos todos perto e perto da escola e estavamos sempre andando de um lado para o outro, resmungando e falando mal das pessoas e da vida em geral.

nesse dia chegamos na ponte e o paco foi na frente, andando mais rápido, o sávio ao lado. o sávio era de nós o mais velho e o mais burro. tinha até repetido de ano. e lembro que fiquei bravo pela pressa dos dois e mais bravo ainda com o sávio por seguir o paco. porque o paco não iria sozinho. "não compra pó pra minha mãe, jura que não vai comprar", suplicou o marquinho. eu disse que não compraríamos, e comecei a ficar nervoso. vi lá na frente o guardinha de trânsito e achei ter visto alguma luz daquelas de carro de polícia. avisei os caras e o paco disse que se voltássemos ia ficar estranho e disse que se eu quisesse eu podia voltar. então continuamos todos e o marquinho "pó não, pra velha não" e eu andei mais cinco metros e vi que eram mesmo luzes de policia e fiquei nervoso, puta merda, juro que eu só queria sumir e tinha um pressentimento ruim, muito ruim. parei, do nada, e fiquei ali, em pé no meio da ponte. o marquinho olhou pra trás com cara de choro e eu fiquei com raiva. o sávio puxou ele pelo braço e eles foram em frente, foram e passaram bem em frente ao carro da policia e viraram a esquerda e sumiram no beco. eu voltei pra casa com a cabeça pesada.


o paco contou depois que foram pegos já quase no final da ponte, na hora da volta, e ele tava com cinco pinos e o sávio com três. os gambés só queriam dinheiro, mas eles não tinham e então os caras tinham cismado com o marquinho e chamavam ele de "o retardado". e levaram todo mundo pra delegacia e chamaram a mãe dele. "o seu filho cheira, o seu filho é débil mental e ainda entope o cérebro idiota de cocaína", disse o delegado pra velha gorda, que não tinha nem esboçado reação, só continuado com a cara triste de sempre.


na semana seguinte o paco queria atravessar a ponte e eu não quis ir e não deixei levarem o marquinho. foram o sávio e o paco. na segunda-feira o marquinho não apareceu na escola, e nem na terça. na quarta fiquei sabendo pelos jornais. "mãe mata filho e morre em seguida. overdose".


o sávio e o paco primeiro disseram que não sabiam de nada, mas insisti e o paco admitiu que a velha era a merda toda. depois de ficar sabendo, na delegacia, que seu filho e eles iam atrás de pó, tinha ligado pro paco. disse que pagava quinhentos - quinhentos, disse paco, dez onças - por cinco pinos. e aí ele comprou, claro, a gente era tudo fodido de grana. eu não teria comprado, juro por deus, mas o paco era outra história. e o sávio? o sávio era um imbecil.


quando o paco me contou eu só não conseguia pensar em mais nada. isso foi há dois anos. e eu ainda não consigo pensar em mais nada.

domingo, 16 de outubro de 2011

natimorto

- alô?

ele fala com voz de sono. pedro ligou no meio da noite. não sabe que horas são. é um domingo, ou já segunda.

- cara, fiz uma merda. uma puta duma merda.

- cacete. o que foi?

pedro conta. ligou, no meio da madrugada, para uma mulher. bêbado, falou arrastado, mas falou coisas bonitas e falou de amor e chegou até mesmo a soltar um convicto "te amo, desculpe as besteiras nos últimos tempos". falou, a voz meio empastada, acordando ela altas horas da noite. e então desligou o telefone celular e continuou andando, rumo a casa. pra acordar no outro dia como se nada tivesse acontecido. na verdade, quase não lembrava e só o registro da chamada no celular é que confirmava o feito. bêbado, muito bêbado, depois de estar desde o almoço nas cervejas com o pessoal do escritório, da merda do escritório.

- tá, você só fez uma declaração de amor. porra. pra quem?

- pra camila.

- pô. não sabia que você tava gostando dela de verdade.

- eu não tô. por isso que eu disse que fiz uma puta duma cagada.

- deixa eu entender bem. você não quer nada com ela, mas ligou e falou que amava ela. por quê?

- não sei. simplemente não sei. talvez eu tenha chegado a realmente amar. durante aqueles poucos segundos em que veio na minha cabeça ligar pra ela e o rápido diálogo que travamos. e então se foi.

- simples assim. inexplicável assim.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

para ainda acreditar

o dia amanheceu com aquela cara de quem não quer amanhecer e eu levantei da cama com minha preguiça característica e praguejando contra o despertador, que insistia em retornar por mais que eu apertasse o botão por mais e mais cinco minutos. encarei o metrô que, apesar de nova linha e propagandas governamentais, aparece cada dia mais lotado. encarei o ônibus, que no dia cinza parecia fazer parte da atmosfera morta com sua fumaça e barulho. aguentei o chefe, a correria, o horário de almoço no pior restaurante da cidade. parece dramático, mas era só rotina. não chegava nem a ser ruim, só era normal. na volta mais um ônibus lotado e correndo pelas avenidas qual um touro desembestado. e descer para mais um deles, mais um rumo ao centro, rumo a casa, rumo a nada que me esperava, talvez televisão e computador apenas ou um nelson rodrigues que me aguardava na mochila.

desci então do ônibus pronto para mais uma espera naquela que me parecia a avenida com mais ventos no país todo. desci e a vi no ponto de ônibus e foi assim, como pousar os olhos sobre um ser de outro planeta. um casaco verde, um bonito casaco verde sobre os ombros, os cabelos pretos caindo por sobre eles, o rosto pálido, os olhos negros, castanho escuros - que seja - um não-sorriso no rosto, a expressão séria, a blusinha preta e o jeans descompromissado e o olhar à espera ela também de um ônibus - qual seria? - e os all star nos pés e eu juro que aquilo me matava, cada detalhe. peguei o nelson rodrigues para fugir, pois não podia ficar ali encarando-a, sob a pena de passar por tarado ou doente mental. mas, céus, eu de pouco em pouco abandonava as páginas que falavam justamente de amor, do excesso de amor, as crônicas que pareciam me mostrar que ele ainda estava ali. o amor mais exacerbado e mais idiota e gratuito.

passou o 784 e ela subiu.

fiquei olhando primeiro enquanto fazia o sinal, depois como se encaminhava para a porta e subia, indo, indo, lá dentro, passando pela catraca, o ônibus saindo, partindo, para longe, pela avenida mais triste do mundo.

tentei voltar ao livro, mas não conseguia me concentrar.

passou o 383 e eu subi. sentei na primeira cadeira que vi e encostei a cabeça no vidro. dormi como uma criança. dormi com sonhos bons.

era o amor mais idiota, mais repentino, mais inoportuno e mais bonito da minha vida. eu nunca mais ia vê-la. mas não iríamos brigar, não ia haver mágoa, não ia haver más recordações. foi bonito, eu pensei, quando acordei milagrosamente no ponto e comecei a então curta caminhada até em casa. porra. foi bonito.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CGH QUIN 22H40

L: as pessoas têm andado todas um pouco sumidas, não parece? o que seria, o ritmo dos novos tempos, a velocidade dos dias, as malfadadas redes sociais?

R: não sei. também tenho percebido.

L: é como se sentir um pouco distante de tudo e todos. mas quem foi viajar foi você, e não eu.

R: tô voltando agora e te juro que sinto tanta saudade quanto medo.

L: medo de quê?

R: não sei o que vou encontrar. não sei se ainda vai ser a mesma coisa. lembra quando você me falou que foi pra santo antônio do cantagalo e sentiu como se não fosse mais parte daquilo tudo?

L: lembro.

R: eu não queria sentir isso. até porque minha volta é temporária. então tenho medo de, quando me for novamente, não ter mais nem sequer a boa lembrança na cabeça. somente o vazio.

L: então. eu estava mentindo.

R: como?

L: sobre a cidade. sabe, tem coisas que não saem da gente nunca. mudam. mas não saem.

R: o que talvez seja pior.

L: é pior. com certeza.