o marquinho ia andando do meu lado, a cabeça baixa, quieto, parecia que sempre perdido, com a mente em outro lugar. mas de vez em quando falava alguma coisa e era sempre a mesma frase. "não compra pó pra minha mãe, a velha não pode cheirar". eu garantia que ninguém faria isso ee ele acalmava um pouco, voltando ao estado normal. era invariavelmente assim quando íamos eu, ele, o sávio e o paco atravessar a ponte para comprar pó. a gente estudava junto e normalmente fazia isso de quinta ou sexta. morávamos todos ali no bairro e tínhamos que passar pela ponte e virar a primeira esquina à esquerda pra, no beco do rato, encontrar o véinho e pegar a parada. eu e o marquinho não cheirávamos. eu tinha chegado a usar alguma vez ou outra, mas nada de mais. o paco gostava muito e o sávio meio que ia na dele. mas estávmaos os quatro sempre juntos e, de um modo ou de outro, não havia muito a se fazer por ali. o engraçado, ou não, é que tinha um guardinha de transito sempre ali, no fim da ponte, e as vezes apareciam uns policias pra falar com ele. eu ficava sempre com medo e até chegava a voltar pra trás e me irritava o modo como o marquinho seguia adiante, indiferente. ele era meio retardado, e é chato dizer isso, mas era, e a gente meio que cuidava dele. mais eu, poarque os caras não tinham muita paciencia. em alguns dias até levava ele em casa. a mãe dele era uma velha gorda e quieta e estava sempre com cara de triste e por vezes chorando. moravamos todos perto e perto da escola e estavamos sempre andando de um lado para o outro, resmungando e falando mal das pessoas e da vida em geral.
nesse dia chegamos na ponte e o paco foi na frente, andando mais rápido, o sávio ao lado. o sávio era de nós o mais velho e o mais burro. tinha até repetido de ano. e lembro que fiquei bravo pela pressa dos dois e mais bravo ainda com o sávio por seguir o paco. porque o paco não iria sozinho. "não compra pó pra minha mãe, jura que não vai comprar", suplicou o marquinho. eu disse que não compraríamos, e comecei a ficar nervoso. vi lá na frente o guardinha de trânsito e achei ter visto alguma luz daquelas de carro de polícia. avisei os caras e o paco disse que se voltássemos ia ficar estranho e disse que se eu quisesse eu podia voltar. então continuamos todos e o marquinho "pó não, pra velha não" e eu andei mais cinco metros e vi que eram mesmo luzes de policia e fiquei nervoso, puta merda, juro que eu só queria sumir e tinha um pressentimento ruim, muito ruim. parei, do nada, e fiquei ali, em pé no meio da ponte. o marquinho olhou pra trás com cara de choro e eu fiquei com raiva. o sávio puxou ele pelo braço e eles foram em frente, foram e passaram bem em frente ao carro da policia e viraram a esquerda e sumiram no beco. eu voltei pra casa com a cabeça pesada.
o paco contou depois que foram pegos já quase no final da ponte, na hora da volta, e ele tava com cinco pinos e o sávio com três. os gambés só queriam dinheiro, mas eles não tinham e então os caras tinham cismado com o marquinho e chamavam ele de "o retardado". e levaram todo mundo pra delegacia e chamaram a mãe dele. "o seu filho cheira, o seu filho é débil mental e ainda entope o cérebro idiota de cocaína", disse o delegado pra velha gorda, que não tinha nem esboçado reação, só continuado com a cara triste de sempre.
na semana seguinte o paco queria atravessar a ponte e eu não quis ir e não deixei levarem o marquinho. foram o sávio e o paco. na segunda-feira o marquinho não apareceu na escola, e nem na terça. na quarta fiquei sabendo pelos jornais. "mãe mata filho e morre em seguida. overdose".
o sávio e o paco primeiro disseram que não sabiam de nada, mas insisti e o paco admitiu que a velha era a merda toda. depois de ficar sabendo, na delegacia, que seu filho e eles iam atrás de pó, tinha ligado pro paco. disse que pagava quinhentos - quinhentos, disse paco, dez onças - por cinco pinos. e aí ele comprou, claro, a gente era tudo fodido de grana. eu não teria comprado, juro por deus, mas o paco era outra história. e o sávio? o sávio era um imbecil.
quando o paco me contou eu só não conseguia pensar em mais nada. isso foi há dois anos. e eu ainda não consigo pensar em mais nada.