terça-feira, 13 de março de 2012

eu estrangeiro

as calçadas da avenida são joão talvez não tenham mais o charme dos versos de caetano, mas com certeza ainda guardam os presságios de sangue de vanzolini, embora eu ache que inezita canta melhor essa resignada angústia. tem todos os ônibus que exalam aqueça fumaça tosca, tem os mendigos que armam espertamente casinhas de papelão debaixo do viaduto, a maravilha arquitetônica do minhocão, sempre cheio de goteiras e o cheiro de mijo. e tem as pessoas que passam apressadas de um lado para o outro, algumas com medo. a tevê fala da praga do crack, a polícia bate, os pobres coitados correm e todo mundo corre junto. jogo um cigarro no chão e viro as costas sem nem ver se ele apagou. podia cair em algum material inflamável e acabar com o mundo, como que em uma grande sátira do dilúvio bíblico. os meses pré-março, afinal, não traziam para nós a cascata, as águas, o pau, a pedra?

eu tinha muitos planos, sabe, quando apareci por essa cidade e por esse centro que ainda consegue me enganar todos os dias. uma vez por semana o 747 mente rumo ao posto da prefeitura onde eles me dizem que ainda não, pra voltar semana que vem e eu volto pro meu canto. o hotel cobra quinze reais ao dia e isso a gente consegue de qualquer jeito, em qualquer lugar, hoje qualquer pé rapado tem uma nota de vinte nos bolsos. no carnaval teve festa na rua e lembro de mendigos e playboys comprando latinhas do camelô a preços inflacionados. mais caro que o frigobar, penso, enquanto pego uma brahma e sento na cama, colchão daqueles velhos, poeirentos e com rasgos acumulados.

no quarto do lado tem uma moça que atende por vinte reais a meia hora e no segundo andar tem um dividido por três nóias. começo a tomar a cerveja e pego o celular, aparelho daqueles antigos, para vasculhar a agenda e lembrar que estão todos em outro DDD. eu ainda não consigo entender porque não deu certo, ainda não consigo conceber as noites no hotel tranqueira que parecem cada vez fazer menos sentido e custar mais. ligo para a menina do 322, mas o telefone só chama. levanto da cama e ensaio descer à rua, mas não parece fazer sentido. ligo novamente e nada. chamo na recepção e pergunto por ela. não sabem dizer. olho mais uma vez o celular para ver que não anotei o número. abro a carteira e vejo que, porra, eu tenho os vinte reais, tenho uns quarenta. ligo a televisão e aparece só o símbolo da emissora na tela, um relógio e uma promessa implícita de que a programação volta ao normal pela manhã, umas seis horas, talvez antes, com telecurso, educativo, coisa assim.

deito na cama e troco para o canal adulto. duas mulhares se agarram, um cara chega no meio. abro o zíper e coloco a mão dentro da calça.

cochilo dois minutos depois.

sonho com o telefone tocando, é ela, acaba de chegar no quarto, está vindo, promete por quinze reais. acordo com o pau na mão, mole, o filme já acabou.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

quando não falar é dizer mais do que se pode

já andou por alguma cidadezinha de interior no meio da madrugada, num dia de semana, assim, sem mais nem menos? as luzes todas apagadas, uma ou outra lâmpada perdida que fica acesa pelo caminho e parece apenas uma prova de que tudo saiu correndo tão rápido que mal se deu ao trabalho de apertar um botão. aqueles mosquitinhos voam em volta da claridade e ao longe dá pra ouvir os grilos. mas na verdade você não ouve, porque eles também fazem parte do silêncio, do total e absoluto silêncio. então você dá um passo e escuta o som de seus próprios pés no mato ou na lama e não tem como não se sentir um intruso, um estranho, um ruído. por isso você para. silencia. como se desaparecesse. mas ainda está ali, como a lâmpada acesa. e aos poucos vai tomando gosto pela escuridão e pelo vazio da noite avançada. pelo quase não existir, pela ausência do tempo. é o que acontece. quando começo a escrever, rompo esse silêncio quase sagrado. se antes eu queria avançar e encontrar algum caminho, agora quero somente ficar parado e me misturar, qual camaleão, a esse momento zero. camuflado na sombra, eu sou só silêncio e nada.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

matinal

os olhos no espelho pra fazer a barba que não existe,
os pêlos ralos,
falhos,
a gilete desliza pelo rosto com ameaças de corte
como se pulsassem as veias,
o sangue querendo jorrar.
enquanto ainda acordava
sonolento procurava algum sentido nas lembranças da última noite, do último dia.
havia alguma certeza ali,
pensava,
enquanto a lâmina arrancava uma penugem mal nascida.
como aborto.
não era nova a sensação
e sentia que estava sempre como que cortando uma barba que não nascera
em movimentos rápidos demais e sem creme ou espuma para aliviar.
sangue.
era o que podia resultar.
passou um papel toalha no rosto molhado
a testa também molhada
(de suor)
percebeu que não havia cortes nem feridas nem nada que não suas espinhas adolescentes
embora não fosse mais jovem e estivesse
cada vez mais
próximo
dos
trinta
e sentisse como se tivesse mais do que isso,
como que velho,
cansado
mesmo que acabando de acordar.
era o ar quente do banho recém-tomado
que formava o vapor e embaçava o espelho e tornava ruim a visão.
era o vapor que deixava tudo tão difuso tudo tão confuso tudo tão
vapor.